A crise sanitária mundial e seus desdobramentos no Brasil

22/06/2020 16:55

A crise sanitária que assola o mundo devido ao COVID-19 expôs toda fragilidade do sistema capitalista. Assombrados por uma grande crise econômica já prevista desde 2019, as potências capitalistas e todo seu mecanismo de exploração e acumulação de lucros se viram em meio a uma profunda crise sanitária, que começou na China e rapidamente se alastrou por todos os países e continentes. O vírus impôs uma nova ordem, levando países a adotarem medidas de isolamento e distanciamento social para tentar impedir um número ainda maior de mortes. O isolamento consequentemente antecipou e agravou a crise econômica, levando vários países a adotarem medidas ainda mais duras contra os trabalhadores para tentar minimizar os impactos financeiros nas contas do grande empresariado mundial.

No Brasil a situação não é diferente. A pandemia alastra rapidamente e os números de contágio e mortes são assustadores.  Hoje, 20 de junho, os números superam 50 mil mortos e 1 milhão de infectados, segundo dados oficiais, que são subnotificados. No entanto, enquanto outros países adotaram medidas de isolamento que a princípio contraria os interesses econômicos, no Brasil o governo Bolsonaro se recusa a reconhecer a gravidade da doença. Um governo que segue a linha ideológica de “negação da ciência”, Bolsonaro trata a doença como algo simples e defende que os trabalhadores e crianças devem “enfrentar” o vírus para salvar a economia. Desde o início dos contágios no Brasil, o presidente Bolsonaro faz descaso da grave situação em que o país e todo o mundo se encontra. Bolsonaro seguiu a mesma política de Donald Trump, dos EUA, e insiste no uso de um medicamento Cloroquina que gera mais polêmica do que apresenta resultados no tratamento da COVID-19. Bolsonaro nega as orientações da OMS, não adota a mínima medida de controle de contágio e, além de tudo, travou uma guerra contra governadores e prefeitos que adotaram medidas de isolamento em seus respectivos estados e municípios.

O país encontra-se em uma profunda guerra cultural/ideológica entre apoiadores e contrários a Bolsonaro. Seguindo as orientações do falso filósofo Olavo de Carvalho, apoiado por lideranças evangélicas, com setores que defendem a teoria da “terra plana”, além de grupos fascistas, temos um governo que nega a ciência aniquilando com cortes sistemáticos de verbas para as pesquisas científicas no Brasil. As atitudes do governo em relação a pandemia derrubaram dois ministros da saúde em 26 dias, por divergências na política de enfrentamento e controle do contágio da doença e no uso da cloroquina. Em plena crise sanitária, o governo brasileiro não faz o mínimo esforço de propor uma política de controle de contágios, ao contrário, a todo momento insiste em reabrir todas as linhas de produção e comércio, expondo ainda mais os trabalhadores ao contágio da doença. O ministério da saúde não tem ministro atualmente. No comando da pasta está um general do exército, atuando interinamente. Os militares se alojam cada vez mais no comando do governo. Enquanto a doença se espalha rapidamente, o governo Bolsonaro segue a cartilha capitalista através do ministro da economia Paulo Guedes aplicando e aprofundando os ataques aos direitos dos trabalhadores e recusando a manter a renda básica para sustentar trabalhadores que perderam seus empregos. Para isso usa a desculpa de não ter dinheiro, mas, destinou 3,2 trilhões de reais a banqueiros nos últimos meses, deixando claro a quem esse governo quer “salvar”.

Além do descaso em relação ao controle de contágios do COVID-19 o escândalo em relação ao desmatamento da Amazônia e genocídio dos povos indígenas, trouxe outras consequências que afetam gravemente a economia brasileira. O Comitê da Câmara dos EUA, com maioria de Democratas, se opõe a ampliar acordos comerciais com Brasil. A situação tende a agravar caso o democrata Joe Biden for eleito, pois, segundo o ex-embaixador Rubens Ricupero, “é mais comprometido com a questão ambiental do que Barak Obama”. O parlamento holandês rejeitou a ratificação do Acordo MERCOSUL-UE, por discordar da política ambiental na Amazônia e pela concorrência agrícola. A profunda crise econômica do Brasil tende a se agravar diante das políticas nefastas de destruição ambiental e as suas consequências nas relações exteriores.

Crise política, acirramento ideológico.

Em meio a toda essa crise sanitária o governo Bolsonaro enfrenta uma profunda crise política desde que um dos principais ministros do governo, o ex-juiz Sergio Moro, responsável pelas ações da Lava-Jato, que condenou Lula e possibilitou a eleição de Bolsonaro em 2018 rompeu com o governo. Ao sair do ministério, Moro expôs a disputa pelo controle da polícia federal e os interesses de Bolsonaro em proteger os filhos, principalmente o senador Flavio Bolsonaro, que é investigado por crimes de corrupção e lavagem de dinheiro entre outras acusações. A saída de Moro e a divulgação do vídeo da reunião ministerial em que a questão da polícia federal foi exposta, fragilizaram a base de apoio do governo, o que obrigou Bolsonaro a buscar apoio, distribuindo verbas milionárias a deputados do chamado “centrão”- pequenos partidos de direita que se vendem em troca de apoio no congresso. Essa manobra causou mais desgaste para Bolsonaro junto ao seu eleitorado já que, durante a campanha eleitoral disse que rejeitava e que nunca praticaria a “velha política” de comprar apoio no Congresso. O vídeo da reunião foi um golpe no governo, pois mostra ministros fazendo declarações racistas, de ataque explícito a servidores públicos, destruição ambiental e, talvez a mais comprometedora, a declaração do ministro da educação Abraham Weintraub, que ataca e ameaça claramente os ministros do STF. Após esses eventos, um grupo que se autodenomina “ 300 do Brasil” acirrou ainda mais os problemas. De caráter fascista, o grupo acampou em Brasília para “treinamentos de guerra”, fizeram um ato de ataque ao STF mascarados e com tochas, numa clara alusão aos membros da Ku Klux Klan. Todos os atos, que pedem o fechamento do Supremo são claramente apoiados por Bolsonaro. Nos últimos dias o STF autorizou quebra de sigilo bancário de deputados da base Bolsonarista, fez buscas e apreensões de materiais nas casas e prendeu provisoriamente a líder do grupo fascista 300 do Brasil. Bolsonaro percebendo que o STF aumenta a pressão contra o núcleo ideológico do governo, voltou a fazer ameaças, insinuando uma intervenção, um golpe com ameaça de reeditar o ato institucional que marcou o início dos anos de chumbo do golpe de 64.

A resposta a essas ameaças foi a prisão no último dia 18/06, de Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flavio Bolsonaro, investigado pelas movimentações financeiras do gabinete do senador Flavio Bolsonaro, quando esse ainda era deputado estadual pelo Rio de Janeiro.

Atitudes fascistas e reação

Os atos praticados pelo agrupamento 300 do Brasil chocou parte da população brasileira pela semelhança com os atos praticados por grupos fascistas dos EUA. Com máscaras brancas e tochas nas mãos, perfilados diante do STF faziam ameaças de atacar os ministros do supremo. A reação foi rápida. Torcidas ligadas a clubes de futebol chamadas de “torcidas antifa” convocaram atos para se opor ao avanço fascista. Foram atos convocados sem a participação de entidades de esquerda ou de representação de trabalhadores. Esses atos, mesmo não sendo tão grandes, repercutiram e incomodaram o governo. Interessante destacar que esses atos aconteceram no mesmo momento em que nos EUA e em vários países a reação à morte de George Floyd causou indignação diante da brutalidade cometida pelo policial em Mineapolis.

Os desafios para a esquerda.

A esquerda brasileira vive um momento de grande desafio. Desde os movimentos de 2013, onde uma onda de manifestações tomou as ruas, a direita cresceu no meio desses movimentos e as bandeiras e partidos de esquerda foram rejeitados. Os atos seguiram a perigosa linha de “sem bandeira e sem partido”, com discursos nacionalistas que passaram a dar voz a grupos que se organizavam para atacar o então governo Dilma (PT). Grupos de direita atraíram uma geração de jovens e ocupou o espaço aberto pela esquerda nos movimentos. Há uma série de análises que discutem o motivo que levou milhares de pessoas que nunca participaram de atos a se juntar e identificar com esses agrupamentos de direita. Um discurso moralista, que eleva a defesa da família, da moral e dos bons costumes. Nesse cenário as igrejas evangélicas, que têm representação parlamentar forte no Congresso, sem dúvida tiveram um papel importante. Situação que deu base para impor um discurso de ódio nas eleições de 2014, quando Dilma foi reeleita. Após o processo eleitoral, a direita golpista sustentou o discurso de ódio e preconceito que acabou por derrubar o governo e dominar a sociedade brasileira. Esse debate político de ódio, influenciou gravemente nas eleições de 2018 e, ainda hoje, faz com a esquerda seja rejeitada por grande parte dos brasileiros, da elite aos trabalhadores.

Até agora, a esquerda, principalmente o PT que é o maior partido de esquerda com grande representatividade para os trabalhadores, não se colocam como liderança para os movimentos. Nesse momento de isolamento social a situação é ainda pior, pois não temos como convocar as pessoas para atos de rua.

Nesse cenário de crise política do governo Bolsonaro, começam a se desenvolver ações pela direita contra Bolsonaro. Após pesquisas de opinião revelarem que a base de apoio de eleitores de Bolsonaro é em torno de 30%, o ex-banqueiro “convertido” Eduardo Moreira, lançou a campanha “somos 70%” contra Bolsonaro nas redes sociais. Outra ação contra Bolsonaro é o manifesto suprapartidário do Movimento “Estamos Juntos” onde assinam lideranças de direita e esquerda, artistas, escritores, religiosos e outros. O manifesto é claramente contra os desmandos de Jair Bolsonaro. No entanto, Lula se manifestou contrário a assinar esse manifesto. Para ele é apenas uma ação para derrubar Bolsonaro e não apresenta a defesa de interesses da classe trabalhadora. Lula defende que o PT é capaz de ter ação própria contra Bolsonaro e apontar a saída para os trabalhadores. Para Lula, o que essa elite quer é tirar Bolsonaro, mas manter o governo Bolsonaro, um governo que impõe políticas de austeridade contra trabalhadores. Porém, não vemos até o momento nenhuma ação do PT em direção aos trabalhadores, nenhuma convocação para organizar os trabalhadores. Estamos em isolamento, mas grande parte dos trabalhadores não estão em isolamento, por estarem trabalhando ou por não terem condições de fazê-lo. Trabalhadores que estão sendo expostos ao contágio diariamente, que estão perdendo emprego ou direitos com as medidas adotadas pelo governo, agravando ainda mais a situação.

A esquerda brasileira passa uma situação em que não consegue se afirmar junto aos movimentos, não assume o papel de liderança dos trabalhadores na atualidade brasileira. É uma crise profunda que abriu espaço para a extrema direita ocupar. O discurso da extrema direita que está no poder atingiu a classe trabalhadora. Um discurso reacionário, fascista, que prega ódio às minorias, à educação, as artes. Transformou professores e a cultura em inimigos da sociedade, destrói o ensino e a pesquisa científica. A esquerda não consegue dialogar entre si. As poucas tentativas de Frente Única duram muito pouco sem atingirmos minimamente os objetivos propostos. Como disse o filósofo Vladmir Safatle a esquerda brasileira sofre hoje, uma profunda crise de identidade. É necessário resgatar essa identidade de representação da classe trabalhadora. O que temos assistido há anos é uma esquerda que se preocupa apenas com a agenda eleitoral, com os possíveis votos e cargos que podem ser alcançados.

Lula está correto em afirmar que o PT não tem que assinar manifesto com golpistas para se livrar de Bolsonaro, que o partido tem pauta para os trabalhadores, mas não aponta o caminho da luta, da mobilização e do posicionamento do PT e, da CUT, como a principais ferramentas de luta dos trabalhadores. Algumas análises apontam que Lula com esse discurso tenta reorganizar a base do partido para retomar a liderança num futuro próximo, mas construída com as velhas alianças com a direita.

Enquanto isso, vários pedidos de impeachment são protocolados no Congresso, mas não há sinal de que Rodrigo Maia - presidente da Câmara - vá pautar esses pedidos. Bolsonaro tenta se fortalecer através do apoio do Centrão, dos militares e da polícia. É um governo fraco, mas que se mantém por seguir a agenda neoliberal. Enquanto nós trabalhadores sofremos todas as consequências econômicas e sociais da pandemia, o governo segue atacando direitos e a esquerda não movimenta para organizar lutas.

É preciso urgentemente que as lideranças de esquerda, principalmente do PT e da CUT convoquem os trabalhadores, se dirijam à base para dizer que esse governo é de destruição e que precisamos fazer o enfrentamento. Sabemos que o isolamento é necessário, mas na atual situação, temos que dizer aos trabalhadores que não será possível enfrentarmos a doença, ter condições de fazer isolamento, garantir condições dignas de vida enquanto o governo Bolsonaro durar. Somente derrubando todo esse governo poderemos ter as mínimas condições de exigir melhores condições de vida, trabalho e atendimento de saúde.

Temos que dizer claramente a classe trabalhadora que um governo que destina 3, 2 trilhões a banqueiros e se nega a manter ajuda aos trabalhadores, não se importa com as 50 mil mortes por corona, que se preocupa apenas com os grandes empresários e em salvar a própria família não pode mais se manter.

Diante desse caos, os partidos de esquerda necessitam de um debate fraterno para construir uma Frente de Esquerda programática, com a pauta da classe trabalhadora, contendo suas reivindicações imediatas e transitórias. Só assim conseguiremos um governo de esquerda que represente os interesses dos trabalhadores.