Charlie Hebdo: Terrorismo Islâmico, Racismo Republicano
Secretariado Internacional, Liga para a Fifth Sun International, 2015/11/01 - 10:00
O ataque, no dia 7 de janeiro, sobre o escritório do semanário satírico francês Charlie Hebdo, em que 12 pessoas foram mortas, deve ser condenado sem equívocos. Foi um ataque realizado por defensores de uma filosofia política reacionária rejeitada pela esmagadora maioria dos muçulmanos da França, bem como por trabalhadores e jovens franceses. Ele foi seguido por outros incidentes que deixaram mais cinco pessoas mortas. Nossa sincera simpatia e condolências vão para as famílias e colegas das vítimas.
Quaisquer que sejam os motivos dos autores do ataque, as suas consequências serão um reforço da opressão racial e religiosa. As demonstrações da elite política da França deixam claro que eles estão determinados a usar a atrocidade para justificar as próprias políticas e práticas do Estado francês, que criam o terreno fértil para o terrorismo islâmico. O presidente da França, François Hollande, afirmou: "Estamos ameaçados porque somos um país de liberdade". Seu antecessor, Nicolas Sarkozy, afirmou que, "Foi uma declaração de guerra contra a civilização. Confrontada com a barbárie, a civilização tem de se defender". Nenhuma dessas afirmações é verdadeira.
O Estado francês tem sua própria linha de "barbárie" que mostrou sobre os povos árabes e muçulmanos do Norte da África e no Oriente Médio, a partir da Guerra da Argélia para as suas intervenções presentes na África sub-saariana. Diante destas, as atrocidades terroristas são consideradas nanicas, como as de Charlie Hebdo. As guerras e ocupações da última década e meia, travada pelos aliados da Otan, os ataques genocidas de Israel sobre os palestinos, especialmente aqueles em Gaza, de forma que todos agissem para afastar e ultrajar muitas pessoas de origem muçulmana. O mesmo aconteceu com a proibição do hijab (vestimentas islâmica) nas escolas francesas e negando às crianças muçulmanas o direito de uma alternativa para a carne de porco nas cantinas escolares. Para tudo isso, podemos acrescentar a própria ameaça do presidente Nicolas Sarkozy de "karcheriser" (vapor limpo) para os subúrbios, o que contribuiu para uma onda de tumultos por jovens a quem ele se referiu como "racaille" (que um dicionário de gíria define como "criminosos brutais geralmente de origem árabe").
A perseguição policial regular da juventude árabe nos subúrbios, a agitação racista das forças crescentes da Frente Nacional de Marine Le Pen, todos os complementos para o fundo em que desenhos animados deliberadamente provocativos do Charlie Hebdo conseguiram proporcionar uma "desculpa" para os terrorismos individuais, que por sua vez, pode levar a incêndios de mesquitas e até pogroms da extrema direita. Além disso, através da publicação de caricaturas racistas de muçulmanos e africanos, a revista reforça e ao mesmo tempo legitima, a onda de islamofobia desenvolvida não só na França, mas em toda a Europa.
Para argumentar, como alguns da esquerda na França e internacionalmente têm feito, que a questão central é a necessidade de defender a liberdade de expressão e do laicismo, que estão supostamente sob ataque de (Mulçumanos) um obscurantismo religioso, é completamente errada e ignora totalmente o contexto do imperialismo, do racismo e da guerra pelas potências da Otan para continuar a dominar e saquear as reservas de petróleo do Oriente Médio. Reconhecer o direito à liberdade de expressão e liberdade de expressão não significa tolerar o exercício de todos esses direitos. Como todos os direitos formais, o seu exercício tem de ser limitado pelo direito dos outros para não serem ameaçados de extinção, como os muçulmanos e outras comunidades que agora estão em perigo.
Na França, o laicismo, a sátira das idéias e as autoridades religiosas têm uma longa tradição enraizada nos grandes movimentos revolucionários dos séculos 18 e 19. Naquela época, o alvo foi a, ainda tremendamente poderosa, Igreja Católica, que apoiou as forças contra-revolucionárias que se opuseram à república. Defesa de que a tradição tornou-se um elemento central da ideologia da burguesia francesa, uma parte fundamental da sua pretensão de representar a modernidade e civilização. No entanto, para equiparar os ataques contra a religião da antiga classe dominante com ataques à religião das minorias oprimidas é ficar do lado dos opressores.
Direitos democráticos
Socialistas defendem o princípio de um Estado laico contra todas as tentativas de dar privilégios à religião na vida pública. Defendemos a liberdade de criticar a religião tão vigorosamente quanto denunciamos qualquer crítica que assume conotação racista. Na verdade, em toda a Europa, racistas estão driblando as leis anti-racistas, alegando que eles estão apenas criticando o Islã como uma religião. Eles estão ocupando as questões de misógina e homofobia também como armas para criar uma imagem dos muçulmanos em geral, como elementos estranhos reacionários e perigosos. Esta incitação à islamofobia, ou seja, ódio e medo dos muçulmanos, é tão ruim como o incitamento anti-semita, da qual a França já teve essa experiência amarga.
É claro que Charlie Hebdo não é uma ala mais à direita ou uma generalizada revista racista e, de fato, ela pediu a proibição da Frente Nacional e virulentamente satirizou Le Pen, pai e filha. Seus defensores apontam que ela também zombou do Papa e outras religiões, incluindo o judaísmo. Mas seus ataques contra os muçulmanos e o Islã estão em uma classe diferente e não pode ser considerada como algo além de virulenta islamofobia. Estes desenhos não eram uma defesa corajosa da liberdade de expressão, mas um ataque covarde a uma minoria perseguida e desfavorecida.
O que quer que os seus promotores pretendem, a #JeSuisCharlie, campanha de mídia social, que visa inundar a web com desenhos ofensivos da revista, só pode ter consequências reacionárias. Sua mensagem é clara, qualquer um declara identidade com Charlie Hebdo e afirma o direito de publicar as caricaturas racistas ou ao lado dos islamitas que realizaram o ataque. Isso não só dá um impulso aos racistas, mas é muito provável que incite algumas das vítimas da islamofobia para novos ataques, iniciando um novo ciclo de atrocidades. Defendemos tanto o direito de criticar a religião quanto o direito de praticá-la, livre de discriminação ou abuso. Estes direitos dão uma proteção limitada para a classe trabalhadora e os grupos socialmente oprimidos em uma sociedade onde o poder econômico, político e ideológico, o poder da imprensa e outros meios de comunicação, estão concentrados nas mãos de uma classe dominante que manipula as diferenças religiosas e étnicas para tirar vantagem.
Para defender esses direitos de forma consistente, no entanto, significa rejeitar as perspectivas e a ideologia da classe dominante francesa. Em particular, isso significa rejeitar a alegação de que a laicidade francesa oficial constitui uma defesa objetiva dos direitos de todos os cidadãos. Isto é um falso universalismo. Ao elevar a laicidade a, por assim dizer, um princípio sagrado, ela efetivamente diz que quem não adora, não é realmente parte da sociedade francesa. Da mesma forma, rejeitamos a fantasia de que a laicidade burguesa é um bastião dos valores universais do Iluminismo e da cultura europeia que agora está sob o cerco de reacionários religiosos atrasados.
A unidade nacional
Nem o laicismo, nem a liberdade de crítica religiosa, estão gravemente ameaçados na França ou em qualquer outro lugar na Europa. A centralidade do laicismo para o Estado francês não é desafiada por um ataque como o que aconteceu em Charlie Hebdo. Na verdade, a natureza desse ataque revela muito claramente o isolamento social e político de seus autores. Tal terrorismo é a arma dos fracos. Por outro lado, atraindo e demonizando uma minoria étnica e religiosa em nome do criticismo satírico é uma rejeição covarde provocada pela ideologia da classe dominante. O louvável registro passado de jornalistas satirizando a França religiosa e a direita reacionária não é mitigação.
O apoio incondicional para Charlie Hebdo pela mídia e pelo establishment político deixa perfeitamente claro que a principal tarefa dos socialistas no momento não é a oposição à auto-censura ou defesa do direito de criticar a religião, mas a oposição a toda a idéia de uma unidade de interesses entre todos os cidadãos da França. Este é o verdadeiro conteúdo e finalidade das principais forças do outro lado do espectro político, do Partido Comunista à Frente Nacional. O enorme comício em Paris no dia 11 de Janeiro, embora boicotado pela FN porque não foi formalmente convidada, é uma celebração da unidade da nação. Embora muitos muçulmanos ou cidadãos franceses de origem árabe, sem dúvida, participaram, o convite para Benjamin Netanyahu, o assassino em massa de Gaza, é uma obscenidade.
A França é um país onde 12% da população muçulmana responde por 60 - 70% da população carcerária, onde lhes são negados os direitos religiosos básicos. A polícia multa as mulheres que vestem a burca na rua. Fascistas os atacam fisicamente. Aos alunos são negados alimentos Halal (permitidos para consumo segundo o Alcorão) e seus pais estão proibidos de participar das excursões escolares. Fingir que o laicismo não foi entrelaçado com e colocado a serviço do racismo, algo que invadiu a consciência popular, é simplesmente uma desculpa vergonhosa para não lutar contra isso. Ele deixa uma arma poderosa e incontestada nas mãos de nosso inimigo de classe.
Conclusão
Socialistas condenam sem equivocação ataques à liberdade de expressão. Nós somos os inimigos implacáveis do projeto político da Al-Qaida e ISIS. Mas também rejeitamos totalmente qualquer tipo de alojamento ao racismo oficial que sugere que a luta a ser travada é defender a democracia burguesa como consubstanciada na República Francesa contra fascistas clericais tentando islamizar a Europa.
A zombaria do Islã e dos muçulmanos de destaque no contexto de um aumento generalizado na violência racista e intolerância religiosa reforça absolutamente os esforços da classe dominante para retratar o "islamismo" como um "inimigo interno" existencial. É duplamente e triplamente prejudicial que os socialistas brinquem com fogo.
As mobilizações de sucesso na Alemanha, contra o movimento islamofóbico "Os europeus patrióticos contra a islamização do Ocidente" (Pegida, sua sigla alemã) mostram o que pode ser feito. Ao destacar o conteúdo racista da suposta "defesa da civilização europeia", os anti-racistas centraram a atenção do público sobre o problema real e trouxeram em torno de 30.000 pessoas para as ruas contra o Pegida de 18.000. Tal como os seus homólogos franceses, a burguesia alemã já está tentando apresentar isso como uma demonstração de valores compartilhados, mas, pelo menos, o movimento estabeleceu que o perigo são os racistas e não os muçulmanos.
Em toda a Europa, a esquerda e o movimento operário devem estar ombro a ombro com os muçulmanos contra os racistas populistas e os partidos fascistas e provar que eles não serão enganados por racismo disfarçado como a defesa da liberdade de expressão e do laicismo. Se fizermos isso, a alienação e sentimentos de perseguição, o que certamente irá gerar mais ultrajes terroristas, podem ser anulados. Dentro das comunidades muçulmanas, uma luta pode ser gerada contra a ideologia islâmica reacionária que será cem vezes mais eficaz do que os esforços dos serviços de segurança do Estado imperialista.
Traduzido por Liga Socialista, Brasil, 15 de janeiro de 2015