Do machismo velado, a reação social: contradições da sociedade machista/capitalista.
Raquel Fracette
No dia 27 de março uma pesquisa divulgada pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), sobre “tolerância social e violência contra mulheres”, mostrou números que levaram a uma enorme reação principalmente nas redes sociais. Segundo a pesquisa, cerca de 65% dos entrevistados acreditam que as roupas provocantes ou o comportamento das mulheres justificam os estupros e a violência.
A reação foi instantânea: pessoas, grupos de ativistas de modo geral se manifestaram de toda forma para expressar total repúdio ao forte machismo e violência mostrada pelos números.
Não acredito que 65% destes entrevistados são estupradores ou defendam o estupro. Mesmo por que, a maioria dos entrevistados que responderam afirmativamente, são mulheres. O que temos então, diante esta pesquisa, estes números assustadores?
Não podemos fazer um recorte para analisar o comportamento das pessoas isolando todo o caráter capitalista que vivemos. A mulher durante s milênios perdeu seu de poder de decisão na sociedade. A partir da acumulação de alimentos (tarefa feminina desde os primórdios da humanidade), a mulher foi submetida ao homem, perdeu seu poder de decisão, escolha e liberdade. As bases do patriarcado estavam montadas pela ideia da herança, do filho, dos interesses e disputas políticas, territoriais e econômicas.
A sociedade capitalista, no entanto, impôs uma nova realidade à situação da mulher. A partir da revolução industrial as mulheres passam a ocupar os postos de trabalho fabril, não por opção, mas pelas condições miseráveis das famílias operárias. Trabalho precário, condições precárias, jornadas exaustivas foram impostas a homens, mulheres e crianças. A mulher passou a ter uma jornada ainda maior, pois seu papel de mãe e dona de casa não sofreu alterações, ou seja, as mulheres passaram ao mundo do trabalho, mas os homens não assumiram as tarefas domésticas. O “status” social das mulheres também não sofreu alteração: submetidas aos pais, maridos, passaram também a submissão do patrão que praticava, inclusive, abusos sexuais contra as mulheres, independente da idade.
Mas as mulheres, também, ergueram suas vozes. Os movimentos de operárias coincidem com os movimentos dos operários do século XIX. Lutaram por melhores condições de trabalho, por redução da jornada. Foram duramente reprimidas, muitas assassinadas, mas o movimento não tinha mais volta. Das lutas por melhores condições de trabalho, as mulheres, passaram a lutar pelo direito ao voto, a emancipação em relação ao homem e outros direitos. São dois séculos de lutas. Mulheres operárias e mulheres burguesas passaram a lutar, por causas distintas ou comuns. A história do movimento feminista é ampla, rica e com detalhes importantes para compreendermos a jornada de lutas até os dias atuais.
No entanto, após tantas lutas, a condição social da mulher permanece ainda muito presa às concepções machistas/patriarcais de tempos remotos. O capitalismo, com sua característica de produção e consumo, cria ainda mais as condições de manutenção da velha ordem em relação a mulher.
O conceito da mulher como mãe, consumidora, sexo frágil, com pouca “habilidade” para tarefas masculinas permanece.
A todo instante, somos varridas por uma enorme publicidade, de aquisição de produtos, da beleza ideal, do cabelo ideal, do corpo. O corpo que é o culpado de todos os males que enfrentamos. O mesmo corpo que “tem” que usar a lingerie, o creme, tem que estar depilado, lisinho, perfumado, magro, malhado e eternamente jovem. O corpo do prazer masculino.
O corpo que nas revistas femininas, tem instrução de uso para agradar ao homem. O corpo que tem que ser usado na medida certa, senão o homem se “aborrece” e não quer mais.
O corpo que tem que gerar filhos, mas os filhos certos, na hora certa, na quantidade certa. O corpo que não pode ter a decisão da própria mulher. A sociedade é que decide sobre ele. Inclusive se ele deve ser estuprado.
Somos a todo momento induzidas pela ideia ser sedutoras, sensuais e atraentes, mas se somos violentadas, a culpa é da mulher.
As contradições da sociedade machista, capitalista são muito duras. No Brasil, nossa sensualidade tropical é a culpada do turismo sexual. Nossos decotes, nossas minissaias, nossos cabelos, todos devidamente tratados pelos produtos capitalistas são os sucubos ¹ atuais.
Mas o que dizer então, das mulheres mulçumanas, que se vestem toda, as que usam burkas, que são igualmente violentadas? Mulheres na Índia, que sofrem estupros coletivos em locais públicos diante de outras pessoas que nada fazem para salvá-las. A violência contra a mulher, com ou sem estupro, atinge todo o mundo. A culpa é sempre da mulher. Ela é que está sempre no lugar errado, vestindo roupas erradas, são elas que provocam.
São estas contradições que a pesquisa nos faz refletir. Os movimentos feministas, criticados, apoiados, são movimentos que levantam toda questão sobre a situação da mulher.
A mulher trabalhadora sofre ainda mais com a questão do machismo. Os conceitos morais da sociedade capitalista são ainda mais duros com as mulheres trabalhadoras pobres. As religiões, de um modo geral, condenam ainda mais as mulheres a submissão, sobretudo as mais pobres, as com menor escolaridade. A ideologia da submissão e da culpa é tão forte, que as mulheres pensam da mesma forma e reproduzem as ideias machistas. Até em uma simples brincadeira de criança é possível observar a reprodução machista: a boneca, as panelinhas, a casinha.
A ideia da boa moça, da família, pesa sobre os ombros das mulheres, mas são encarados como normal.
A reação em relação à pesquisa, mesmo tendo críticas, é um sinal de que a reação a estes pré-conceitos ganham força. Não acredito que mudemos o caráter machista da sociedade capitalista de imediato. Os símbolos, os conceitos e pré-conceitos são enraizados de tal forma, que mesmo após derrubarmos a sociedade de classes, ainda teremos que lutar para derrubar a ideologia marcada por séculos, milênios.
O capitalismo impôs uma nova condição à mulher: o mundo do trabalho. Da produção ao consumo, a mulher é usada pelo sistema e este a mantém na velha condição patriarcal: submissa e culpada. As fogueiras são outras, os métodos talvez, mas as acusações permanecem as mesmas que levaram milhares à fogueira do Santo Oficio. O corpo é para ser usado, mas desde que seja de acordo com os interesses do sistema, dos homens, do Capital.
¹ mito de um demônio com aparência feminina que invade o sonho dos homens a fim de ter uma relação sexual com eles para lhes roubar a energia vital .