Eleições da Bolívia: a derrota do golpe de 2019

01/11/2020 19:18

Liga pela 5ª Internacional / Liga Socialista - 30 de outubro de 2020

 

Um ano depois de expulsar o presidente boliviano Evo Morales, os partidos de direita e extrema direita que organizaram e lideraram o golpe, com o apoio e o incentivo da Casa Branca e da Organização dos Estados Americanos (OEA), sofreram uma derrota devastadora nas urnas. Sua presidente, a usurpadora Jeanine Áñez, que retirou sua candidatura em meados de setembro, foi forçada a ceder. Ela agora enfrenta acusações pela morte de 30 pessoas durante o golpe do ano passado, especificamente nos massacres em Senkata, Sacaba e Yapacani.

Quando as urnas fecharam na quinta-feira, 22 de outubro, Luis Arce e David Choquehuanca, do Movimento Para o Socialismo (MAS), foram declarados eleitos no primeiro turno com 55,1% dos votos. Carlos Mesa, da Comunidad Ciudadana (Comunidade Cidadã), ficou em segundo lugar com 28,83% e Luiz Fernando Camacho, de Creemos (Acreditamos), ficou em terceiro lugar com 14%. (Tribunal Supremo Eleitoral)

O MAS agora tem a presidência e uma clara maioria no Senado e na Câmara dos Deputados. Esta vitória da esquerda trará ânimo para as forças populares em toda a América Latina, onde a direita tem estado na ofensiva nos últimos anos.

As divisões entre os conservadores de direita (Comunidad Ciudadana) e a extrema direita (Creemos), contribuíram para essa acachapante derrota.  Esta última é uma aliança clerical de extrema direita sediada no departamento sul de Santa Cruz, apoiada pela Juventude de Santa Cruz (Unión Juvenil Cruceñista - UJC) um movimento fascista envolvido em ataques terroristas contra ativistas populares.

Outro fator importante foi a movimentação caótica de Áñez e seu governo durante a pandemia do coronavírus e a crise econômica e o ódio despertado por suas políticas de austeridade e privatização da saúde, educação, recursos naturais do país e seus ataques aos direitos da maioria da população indígena boliviana. Por último, mas não menos importante, foi um ano de resistência popular sustentada, que mais uma vez levou à vitória o MAS, populista de esquerda.

No entanto, um sério alarme é a declaração do presidente eleito do MAS, Luis Arce, "Vamos governar para todos os bolivianos e construir um governo de unidade nacional". Este é o típico anseio reformista pela colaboração de classe, mas é altamente improvável que a direita responda positivamente. Internacionalmente, no entanto, todas as forças que apoiaram o golpe, incluindo a OEA, a Casa Branca e a União Europeia se sentiram obrigadas a parabenizar Arce. Até Trump respondeu dizendo : "Esperamos trabalhar em nossos interesses conjuntos”.

 

O secretário-geral da Organização dos Estados Americanos, Luis Almagro, que, segundo o G1-Globo, tentou se justificar argumentando que não há semelhanças entre as eleições anuladas em 2019 e as realizadas nesse domingo: "Não há paralelo, não é muito inteligente desenhar esse paralelo”.  (G1.Globo)

É ainda menos inteligente negar o óbvio - que o golpe foi baseado em uma fraude cínica, levou a dezenas de mortes e à prisão de militantes dos movimentos populares.

Ninguém deve esquecer, no entanto, que as figuras que realizaram o golpe de outubro de 2019, permanecem no controle do exército, da polícia, do judiciário e dos serviços secretos e seus laços com os militares dos EUA e a Casa Branca estão intactos e operacionais.

Além disso, o MAS não é mais confiável como uma defesa contra as forças do capital internacional e do imperialismo do que era antes de 2019. Na verdade, estes últimos esperam que, diante da pandemia e da crise econômica, as massas de apoio ao MAS desiludam rapidamente com o governo e deixem de apoiá-lo, abrindo assim o caminho para a direita assumir o controle novamente. 

As forças sociais, trabalhadores, camponeses pobres e comunidades indígenas que travaram a "guerra da água" de 2000 e a "guerra do gás" de 2003 e se mobilizaram para impedir o golpe de outubro passado, terão que se mobilizar novamente para que as forças de reação sejam desarmadas e as forças do compromisso - os líderes do MAS - impessam a venda dos ricos recursos naturais do país, como os enormes depósitos de lítio, às corporações multinacionais que saquearam o país.

O golpe

Em 20 de outubro de 2019, Evo Morales, do Movimento ao Socialismo (MAS), era reeleito para seu quarto mandato como presidente da Bolívia. Com 47% dos votos e com uma diferença de mais de 10% para o segundo candidato, Carlos Mesa com 36,51%, Morales era eleito em primeiro turno. Isso, porque segundo a legislação eleitoral boliviana, o candidato é eleito no primeiro turno se obtiver mais de 40% dos votos e com no mínimo 10 pontos percentuais de diferença para o segundo candidato.

Mas surgiu uma confusão por causa do método de contagem de votos na Bolívia, que inclui um rápido preliminar (TREP), com base em folhas de contagem dos departamentos individuais, que é então seguida pela contagem oficial de cada voto (cômputo). Apenas este último é considerado decisivo. Embora as discrepâncias tivessem sido apontadas, e a contagem preliminar tivesse sido interrompida, Morales foi finalmente declarado vencedor com uma vantagem de 10%, evitando assim a necessidade de um segundo turno.

A oposição de direita, vendo que a derrota era inevitável, começou a levantar acusações de fraude eleitoral e mobilizaram manifestações e tumultos em protesto, pedindo aos seus partidários que permanecessem nas ruas até que um segundo turno fosse concedido. Logo, grandes manifestações de partidários do MAS também tomaram as ruas de La Paz e uma greve geral por tempo indeterminado foi convocada. Diante da contagem disputada e das mobilizações conflitantes, o governo do MAS cedeu à pressão e pediu uma auditoria externa da votação.  

A Organização dos Estados Americanos (OEA), no dia 23/10, declarou que a melhor opção era a realização do segundo turno. A União Europeia também orientou pela realização de um segundo turno. No mesmo dia, Carlos Mesa declarou que não reconhecia os resultados anunciados pelo Tribunal Supremo Eleitoral (TSE) e anunciou a formação de uma Coordenação de Defesa da Democracia com o objetivo de pressionar pela realização do segundo turno.

Baseando-se nos resultados emitidos pelo TSE, Evo Morales foi reconduzido a seu quarto mandato e passou a enfrentar os movimentos de rua que foram ficando cada vez mais radicais. A polícia, setores das Forças Armadas e setores fundamentalistas racistas e de direita se aliaram com os golpistas. Suas ações de rua tornaram-se cada vez mais violentas, com sequestros de familiares e políticos ligados a Morales. Dezenas de pessoas foram mortas e feridas nesse dia.

Não podemos deixar de destacar também o fato escandaloso de que a Central Obrera Boliviana (COB), a Federação dos Trabalhadores e Sindicatos dos Camponeses Pobres, inicialmente apoiaram o golpe. Com o aumento da radicalização dos dois lados, em 10 de novembro, diante dos enfrentamentos nas ruas somados ao motim dos policiais e das Forças Armadas, Morales “renunciou” à presidência e fugiu do país juntamente com seu vice Álvaro Garcia Linera. Morales denunciou o golpe procurando asilo político no México, Cuba e finalmente Argentina.

Em 12 de novembro, Jeanine Añes, em uma reunião do Congresso, que não tinha o quórum constitucional, se autodeclara presidente interina prometendo restaurar a paz no país e convocar novas eleições o mais rápido possível. O golpe estava consumado.

Linera, ex-líder do movimento tupac katari na década de 1990, também foi o teórico do governo Morales e é autor de Sociologia dos Movimentos Sociais na Bolívia (2005). Em vários artigos, ele usou a "guerra de posição" de Gramsci (ou seja, reformas institucionais) em contraste com uma "guerra de manobras" (ou seja, revolução), para argumentar que a construção de um "capitalismo andino" era um estágio preliminar necessário que poderia durar décadas, antes que o socialismo pudesse ser introduzido.

Embora as reformas culturais, educacionais e previdenciárias do MAS fossem importantes - a declaração da Bolívia como república plurinacional, a promoção da Wiphala para igual status com o tricolor boliviano, o reconhecimento das línguas e culturas aymara, quechua e outras línguas e culturas indígenas, foram igualmente importantes. Mas, o fracasso em proteger as comunidades contra as empresas de petróleo e gás e o agronegócio, quebrou a aliança na qual o Mas tinha montado ao poder. Ao mesmo tempo, a integração das organizações indígenas em instituições governamentais levou à sua burocratização e ao desenvolvimento de uma elite que abandonou Morales no momento crucial.

Finalmente, a elite boliviana e seus conselheiros dos EUA não se limitaram a uma "guerra de posição", mas conseguiram "manobrar" Morales e Linera para o exílio. Eles, por sua vez, deixaram seus partidários para as misericórdias dos generais, chefes de polícia e fascistas.

Assim, enquanto os membros militantes do MAS e das assembleias populares em muitas cidades, notadamente em EL Alto, mantiveram uma resistência heroica e sofreram pesadas baixas, a fuga dos líderes do MAS e a retirada de seus parlamentares, deixou o movimento sem uma liderança centralizada. Isso foi realmente vergonhoso. Esperar algo melhor de seus sucessores hoje ou em qualquer crise futura seria o auge da loucura. Luis Arce durante a eleição se distanciou repetidamente de Morales para a direita. Enquanto ministro da economia no governo deste último perseguiu uma política abertamente pró-capitalista. Não há razão para acreditar que o leopardo tenha mudado suas manchas.

No entanto, a resistência não cessou, apesar da repressão de gangues de extrema direita, do Covid-19 e do deslocamento da vida econômica do país. Em agosto, quando a Suprema Corte adiou a eleição prevista para 8 de setembro, uma onda de greves, bloqueios de estradas e manifestações mostrou à classe dominante que os trabalhadores e as massas indígenas não tolerariam os repetidos adiamentos. Essa pressão mais os conflitos internos do governo tornaram a eleição de outubro inevitável. Mas, devemos dar o crédito pela restauração da democracia formal à luta de classes. Para torná-la realidade, será necessário mais mobilizações em massa, democraticamente organizadas, pelas quais a Bolívia é justamente famosa.

Onde será a próxima?

Esta vitória nas urnas representa muito mais do que uma vitória eleitoral para os políticos do MAS. Muito maior é o resultado da resistência da classe trabalhadora e dos povos indígenas que podem incentivar o fortalecimento das forças progressistas em toda a América Latina. Mas devemos sempre lembrar que é apenas o início desse movimento e que devemos ter cuidado para que ele não termine na conciliação de classes.

Após o imperialismo dos EUA reafirmar sua dominação da América Latina após uma década ou mais de "bolivarianismo" e "socialismo do século XXI", por meio dos golpes no Paraguai, Equador, Brasil e Bolívia, a vitória do MAS incentivará uma luta de retomada nesses outros países. Os trabalhadores bolivianos mostram como vencer, através de greves gerais e outras ações em massa. O caminho a seguir é através da organização e mobilização da classe trabalhadora, para desencadear vendavais revolucionários em todas as Américas.

No entanto, é evidente que a realidade do capitalismo no mundo semicolonial explorado não pode ser alterada por eleições burguesas. Temos que encontrar outra estratégia para a classe trabalhadora, além do reformismo e do eleitoralismo dos partidos populistas como o MAS. Enquanto eles dependem dos trabalhadores e comunidades indígenas empobrecidas empobrecidas para ganhar eleições, uma vez no poder caem na órbita do imperialismo e procuram atuar como agentes locais do imperialismo norte-americano, europeu ou mais recentemente chinês.

É verdade que Morales e Linera arrancaram concessões das disputas com poderes externos e foram capazes de fazer reformas significativas, embora temporárias. Mas, como o golpe de 2019 mostrou, manobras entre eles para obter para a Bolívia uma maior fatia da riqueza que virá do lítio, hidrocarbonetos etc, não impedirá golpes e bloqueios econômicos como os que estão sendo impostos à Venezuela e Cuba. A ligação entre os bilionários arrogantes que buscam se apoderar dos recursos minerais mais recentes da Bolívia - lítio - ficou clara quando Elon Musk, bilionário proprietário da fábrica de carros elétricos Tesla, declarou em seu Twitter sobre o envolvimento dos EUA no golpe da Bolívia: “Golpearemos quem quisermos! Lidem com isso”.

O movimento operário em todo o mundo precisa denunciar tais intervenções externas com a exigência de que, para isso, a soberania da Bolívia deve ser respeitada. Assim como a interferência da OEA e do FMI. Na Bolívia, os líderes políticos do golpe de 2019, bem como os comandantes da polícia e das forças armadas, que prenderam, torturaram e mataram pessoas, devem ser punidos. Isso não é vingança, é uma questão de JUSTIÇA!

Mas, novamente, isso exigirá a intervenção das massas e não apenas decretos de ministros ou leis aprovadas pelos deputados. Exigirá a quebra da disciplina dos "gorilas" sobre a hierarquia e os soldados, com direitos democráticos para eles e milícia armada para as massas populares. Em suma, tornar o país seguro para a democracia e para as medidas socialistas para atender às necessidades das massas significa quebrar o aparato da repressão, o estado do proprietário e da elite capitalista.

A Bolívia também deve ter o direito de rever todos os acordos internacionais, prejudiciais ao seu povo, que foram feitos durante o governo golpista, porque esse não tinha legitimidade para fazê-lo. A venda de sua riqueza, especialmente gás e lítio, deve ser revertida. Os povos originais também precisam ser compensados pelas perdas impostas a eles durante o golpe de Estado da presidente Jeanine Áñez.

Finalmente, o povo boliviano deve permanecer mobilizado e organizado para enfrentar possíveis reações da direita conspiradora do golpe, apoiada pelo imperialismo e até mesmo possíveis recuos do governo do MAS que levam à conhecida conciliação de classes.

Os trabalhadores da Bolívia e os camponeses pobres precisam construir um partido revolucionário internacionalista com um programa para derrubar o capitalismo. Um partido para organizar a classe trabalhadora e construir o processo revolucionário que irá libertá-lo da escravidão capitalista e levá-la ao poder de um novo estado, um estado socialista.

A classe trabalhadora de toda a América Latina sente os fortes ventos, que sopram da Bolívia e do Chile. Isso demonstra também a necessidade urgente de uma organização internacional que os ligue aos trabalhadores da América do Norte, Europa e também da China. Juntos podemos nos libertar das potências imperialistas e seus agentes, corruptos, uma elite ditatorial local. É por isso que precisamos colocar na agenda a construção de uma Quinta Internacional e partidos revolucionários em todos os países. Um componente vital de seus programas deve ser a criação das Repúblicas Socialistas Unificadas da América Latina.

 

Obs.: A Liga pela Quinta Internacional tem acompanhado eventos na Bolívia nos últimos anos. Vejam abaixo.

O Golpe Reacionário na Bolívia https://fifthinternational.org/content/down-reactionary-coup-bolivia

 

O Golpe de Novembro na Bolívia e como revertê-lohttps://fifthinternational.org/content/november-coup-bolivia-and-how-reverse-it

 

Bolívia: a Luta pela Democracia é a Luta pela Revolução. https://fifthinternational.org/content/bolivia-fight-democracy-struggle-revolution