Nota sobre o golpe parlamentar no Brasil e seu impacto sobre as trabalhadoras
“Acabam de derrubar a primeira mulher eleita presidenta do Brasil, sem que haja qualquer justificativa constitucional para este impeachment” (Dilma Rousseff)
No dia 31 de agosto, o golpe político no Brasil foi oficializado, com a finalização do arbitrário processo de impeachment de Dilma Rousseff, a primeira presidenta na história do país, que sequer foi implicada ou acusada por qualquer crime de corrupção. Nós, da Liga Socialista, Seção Brasileira da Liga pela 5ª Internacional, acreditamos que a misoginia foi um dos fatores que influenciaram a abertura e o apoio ao golpe parlamentar.
Ao final da votação no Congresso, os parlamentares golpistas se entregaram a gritos zombeteiros de “Tchau, querida!”. Definitivamente, um episódio simbólico de misoginia e machismo por parte de um Parlamento masculino (somente 9.9% da casa baixa e 16% da casa alta são compostas por parlamentares mulheres). Ao longo dos últimos 6 anos, foram numerosos os comentários da grande mídia e da população em geral quanto à aparência de Dilma (que não são outra coisa além de manifestações evidentes do machismo). Em uma sociedade violentamente patriarcal, pouco importa o que uma mulher líder faz, e sim o que ela veste, como é seu corpo, como caminha, como fala. Quantas vezes lemos comentário sobre o peso, as roupas ou a aparência de representantes masculinos? Nunca ou muito raramente, já que isso simplesmente não é considerado relevante. Em de 2016, as ofensivas misóginas se aprofundaram, atingindo um perturbador nível de violência: os xingamentos passaram a ser “puta”, “vaca”, “arrombada” e “vadia”; foram feitos adesivos para carros que retratavam a presidenta de pernas abertas; foram publicadas charges que colocavam Dilma em posições sexuais. Expressões incompatíveis com uma democracia consolidada e com uma sociedade justa.
Pouco antes do início do processo de impeachment, houve uma série de tentativas por parte da imprensa de construir uma outra imagem da presidenta, de desequilibrada. Uma estratégia patriarcal bastante comum para deslegitimar as mulheres é associá-las à irracionalidade e ao desequilíbrio emocional. São muitos e bastante conhecidos os estudos que apontam que mulheres com comportamentos morais ou sexuais “desviantes” (leia-se: livres) foram historicamente tratadas como histéricas. O que se fez em relação à presidenta foi explorar essa receita. Talvez o melhor exemplo tenha sida a capa da Revista Istoé, que utilizou uma imagem adulterada de Dilma e teve como título “as explosões nervosas da presidente”. Tratou-se, obviamente, de uma jogada misógina que atinge a todas as mulheres ao perpetuar a ideia de que elas tendem ao desequilíbrio e, portanto, são incapazes de governar ou tomar decisões razoáveis (na esfera pública e na esfera privada). Obviamente, se fosse um presidente homem e se a revista decidisse levar a campo uma campanha de difamação contra ele, optaria por outra estratégia ou recurso. Definitivamente, não invocaria a “loucura” ou a “irracionalidade” do mesmo, já que essas são características associadas às mulheres.
Todas as presidentas ou grande líderes sofrem com algum tipo de julgamento ou tratamento machista. Aqui na América do Sul, tivemos duas presidentas para ilustrar isso. Cristina Fernández de Kirchner foi considerada uma mandatária impopular por ser uma figura forte e possuir estilo de liderança hierárquico e de confronto. Em diversas pesquisas, foi caracterizada como dona de um estilo “masculino”, ou muito próximo do que se esperaria de um presidente homem – o que causou insatisfação. Michelle Bachelet, ao contrário, é destacada por ser mais colaborativa e norteada pelo consenso e inclusão (características tradicionalmente consideradas “femininas”) – o que também causa insatisfação, pois ela é apontada por vezes como uma líder fraca. Ou seja, aceitando ou rejeitando o papel tradicional feminino na política, as grandes líderes sempre serão julgadas, pelo único motivo de não serem desejadas no universo da política institucional, já que são mulheres.
Voltando à Dilma, o fato de ser uma presidente mulher provavelmente teve algum impacto nas suas relações com o Congresso. Dilma manteve os acordos e a base de apoio determinadas nos governos de Lula e, ainda assim, enfrentou uma deterioração fortíssima das relações com o Congresso. Por um lado, isso se deve ao fato de a presente legislatura ser a mais conservadora desde 1964. Por outro lado, podemos observar que os legisladores tendem a não respeitar a autoridade das mulheres, mesmo quando se trata da própria presidenta da república. Essa deterioração é perigosíssima em relação à capacidade de governar: sendo uma figura poderosa, a presidenta não teve capacidade de fazer passar integralmente sua agenda, pois não só de sua vontade política dependiam as ações governamentais. Sem base de apoio no Parlamento, há enorme dificuldade para fazer passar sua agenda política e até mesmo de manter a Presidência, como pudemos observar nos diversos fracassos políticos que culminaram no processo de impeachment.
“O golpe é contra o povo e contra a Nação. O golpe é misógino. O golpe é homofóbico. O golpe é racista. É a imposição da cultura da intolerância, do preconceito e da violência”. (Dilma Rousseff).
A mensagem do afastamento da mandatária brasileira coloca em perigo os direitos das mulheres. O recente cenário brasileiro, que testemunhou um golpe de estado e a ascensão da direita, demonstra os riscos e retrocessos aos quais setores historicamente marginalizados são submetidos quando o Estado cai em mãos de setores conservadores. Seus direitos são cassados. Nesse contexto, é preciso repensar o Estado e suas possibilidades democráticas. Neste sentido, é sintomática a ausência de mulheres ministras no governo interino de Michel Temer e a dissolução do Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos pelo governo interino e ilegítimo de Michel Temer. Ele criou a Secretaria de Direitos Humanos, submetida ao Ministério da Justiça, para abrigar as secretarias das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. A SPM, que já teve status ministerial, era crucial para a garantia dos direitos das mulheres. Com bem nos lembra Simone de Beauvoir, “basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida”.
Nós, da Liga Socialista, além de acreditar que o golpe é machista, estamos seguras/os também que o governo do usurpador Michel Temer perseguirá as mulheres, sobretudo das trabalhadoras, cassando seus direitos conquistados. Em um contexto de golpe de estado, ameaça a direitos, e ascensão da direita, estamos sujeitas a todos os riscos de retrocessos, principalmente mulheres, indígenas, negros, LGBTs, trabalhadores. O Estado burguês, como sabemos, é o maior defensor do patriarcado e dos privilégios de nossas elites políticas: um pequeno grupo de homens, brancos, heterossexuais, proprietários e cristãos. Após ter caído em mãos de setores declaradamente conservadores, o Estado será instrumentalizado para suspender os direitos dos setores mais marginalizados.
No governo de Temer, o Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos foi dissolvido e os recursos para políticas para mulheres e igualdade racial foram cortados pela metade (ver gráfico abaixo). No atual contexto de instabilidade política, processo arbitrário de impeachment da presidenta Dilma e ataques diversos à democracia, portanto, a garantia dos direitos já conquistados está fortemente ameaçada. O governo Temer é o primeiro sem qualquer ministra desde o governo de Enesto Geisel durante a ditadura Militar (1974-79).
Portanto, está absolutamente ameaçada a discussão em torno da legalização do aborto. Mais de 1 milhão de mulheres se submetem a abortos ilegais a cada ano. Apesar da luta feminista, a lei permanece inalterada (permitindo a interrupção voluntária da gravidez somente em caso de estupro, risco de morte para a mãe e em casos nos quais a criança não sobreviveria após o parto) e está atualmente sob grande ameaça de retrocessos em proposições legislativas que se encontram em tramitação, sobretudo por conta da aliança feita com lideranças religiosas e igrejas evangélicas. Um exemplo é o projeto de lei 5069, que propõe novas regras para o atendimento a vítimas de abuso sexual, dificultando o acesso ao aborto legal.
No mesmo sentido, caminharam os debates caros à militância LGBT: Dilma apoiou a união civil entre pessoas do mesmo sexo, mas não o casamento homossexual; o governo formulou material didático para combater a homofobia nas escolas, porém decidiu suspender sua distribuição por conta da resistência religiosa. Essas tímidas mudanças provavelmente serão suspensas muito em breve.
A violência sexista e de gênero ainda é estrutural e generalizada. Atualmente, existe somente uma delegacia especializada com atendimento 24h na maior cidade do país, São Paulo. Com o apoio do governo golpista, os parlamentares estão tentando minar a Lei Maria da Penha, o instrumento legal de combate à violência doméstica e de apoio às vítimas.
É preciso fortalecer e articular a luta pelos direitos das mulheres, monitorar estrategicamente políticas e recursos públicos para pautar e sustentar a agenda feminista e antirracista, bem como enfrentar agendas conservadoras e fundamentalistas. Fascistas, golpistas e machistas não passarão!
- FORA TEMER!
- NENHUM DIREITO A MENOS!
- GREVE GERAL!
- TODO PODER AO POVO!
Liga Socialista - Construindo a Seção Brasileira da Liga pela 5ª Internacional