Rojava, Imperialismo e a Revolução
Martin Suchanek, Neue Internationale 194, Berlim, novembro 2014 Mon, 17/11/2014 - 12:45
A heroica resistência das unidades de autodefesa curda do YPG/YPJ é, sem dúvida, atualmente, a vanguarda da luta por um desenvolvimento progressivo no Oriente Médio. Como parte da luta de libertação de uma nação oprimida, ela merece o nosso apoio, independentemente da nossa atitude para com a liderança política dos combatentes, o nível de consciência política ou seus objetivos estratégicos.
Ao mesmo tempo, essa luta também levanta uma série de questões políticas. Que atitude os revolucionários devem tomar em relação às tentativas, sobretudo do imperialismo estadunidense, de abraçar a luta como um meio de obter o controle sobre ela? A resistência curda (e, de fato, a revolução síria) está se tornando um fator subordinado dentro de uma intervenção imperialista liderada pelos Estados Unidos? Que estratégia é necessária para defender as conquistas em Rojava? Como pode a revolução ser estendida?
Objetivo da intervenção dos EUA
A rápida ascensão do arqui-reacionário, clerical fascista "Estado islâmico", a sua conquista de Mosul e a aquisição de grandes estoques de armas modernas causaram a reação do imperialismo estadunidense que planejou uma nova intervenção "humanitária". O presidente Barack Obama declarou uma nova "guerra contra o terror". Sem dúvida, ele foi orientado para isso, ao invés de olhar para um novo conflito armado, após a retirada vergonhosa das tropas americanas do Iraque e da aceitação do regime Assad como um aliado da Rússia e do Irã.
Nas últimas décadas, a política dos EUA, a crise capitalista e a mudança no equilíbrio de poder entre os Estados imperialistas, juntos, criam condições que mais uma vez requerem uma intervenção mais direta por parte dos EUA e seus aliados. Após a vitória na Guerra Fria, o remanescente, da aparentemente onipotente "superpotência", os EUA, queria criar uma "Nova Ordem Mundial", em particular no Oriente Médio, onde hoje podemos ver ao contrário, o fracasso dessa tentativa.
Para citar apenas os mais importantes fatores que levaram ao atual desenvolvimento:
a) A tentativa de basear a criação da "Nova Ordem Mundial" sobre a guerra contra o regime iraquiano, a queda de Saddam Hussein e seu Partido Ba'ath, não tem "reestruturado" o Iraque, mas, em vez disso, o desestabilizou permanentemente. Este estado, que era, em qualquer caso, uma criação artificial do imperialismo após a Primeira Guerra Mundial, agora está enfrentando um colapso.
b) Além disso, a imposição da política econômica neoliberal em toda a região gerou enorme agravamento das desigualdades sociais e antagonismos de classe. Crise, guerra e ocupação militar levaram à morte de centenas de milhares, uma enxurrada de refugiados e à intensificação dos antagonismos nacionais e religiosos. Não só a grande maioria dos camponeses e trabalhadores empobrecidos, de fato reduzidos à miséria absoluta, mas também grandes setores da classe média e da pequena burguesia urbana estão à beira da ruína.
c) Tudo isso criou as condições para a revolução árabe e, dada a profunda crise de liderança da classe trabalhadora e da falta de partidos comunistas revolucionários que organizem de fato a vanguarda do proletariado criou condições também para o crescimento da contrarrevolução.
d) O declínio do imperialismo estadunidense, a diminuição de sua capacidade de manter sua superioridade militar em uma ordem imperialista estável e controlada, não só levou seus rivais imperialistas (Rússia e China e, em certa medida, as potências europeias) a entrarem em cena, mas também potências regionais como a Turquia, Arábia Saudita, Irã e até mesmo Qatar, que esperam reforçar a sua própria influência e libertarem-se um pouco da dominação imperialista.
Revolução síria
Foi neste contexto que a Revolução Síria eclodiu. Devido à repressão brutal por parte do reacionário regime Assad, a revolução rapidamente tomou a forma de uma guerra civil, uma das mais nítidas formas da luta de classes.
A revolução possibilitou a nação curda (incluindo o Kobane, agora em apuros), isto é, os três cantões que formam Rojava, a estabelecerem efetivamente o autogoverno.
Gerido pelo partido irmão do PKK, o PYD, propôs uma chamada estratégica da "Terceira Via" manobrando entre o regime de Assad e as forças da revolução síria. Desta forma, as áreas curdas tentaram ficar de fora da luta e para manter sua distância, tanto do regime de Assad, quanto das forças da revolução síria, como o "Exército Sírio Livre", as unidades de auto-organização locais, etc.
Sem dúvida, esta etapa também foi influenciada pelo fato de que a liderança da oposição síria, como Assad, foi em grande parte oposta à autodeterminação do povo curdo.
No entanto, foi, desde o início, uma estratégia míope, tacanha e politicamente errada. Em primeiro lugar, isso significava que a liderança dos territórios de autogoverno não ofereceu nenhuma perspectiva política e orientação, para a população curda, especialmente para a classe trabalhadora, nas grandes cidades como Aleppo.
Em segundo lugar, toda a política baseava-se na existência de um equilíbrio de forças rivais na Guerra Civil. Uma vitória de Assad, sempre foi claro, significaria o fim de qualquer autogoverno curdo e novamente, a brutal opressão nacional. Para este fim, também ficou claro que ele não iria recuar diante de assassinatos em massa, uma vez que foi preparado para ver 200 mil mortos e milhões de refugiados para manter seu próprio poder.
Uma vitória para a FSA, hoje uma perspectiva muito distante, também teria levado a conflitos, mesmo que houvesse mais e mais forças dentro da FSA que não estavam sob o controle de sua liderança central e poderiam ter sido ganhas para apoiar o direito de autodeterminação dos curdos. Não é por acaso que o PYD e as unidades de autodefesa de Kobane são hoje militarmente aliadas às brigadas da FSA, e com nenhuma outra força na Síria.
Rojava jamais teria sido criada sem a revolução síria. É um produto da revolução e hoje um dos seus últimos centros restantes. Por outro lado, também é claro que, em última instância não pode sobreviver sem o renascimento e a vitória da Síria, de fato, a revolução árabe.
Iraque, Turquia ...
O que é verdade para a Síria, também se aplica aos outros países. No Iraque, sob a liderança reacionária do Barzani (KDP) e Talabani (PUK) uma região curda autogovernada, o primeiro passo para um Estado curdo, foi criado, como em Rojava, o outro lado da desintegração do Iraque (como Rojava é o outro lado da desintegração da Síria).
O objetivo das potências imperialistas, especialmente os EUA, é manter a ordem imperialista e os limites entre os estados criados na década de 20, após o colapso do Império Otomano. Os estados iraquianos e sírios devem ser restaurados de alguma forma. Um colapso na Jordânia e do Líbano agravaria ainda mais esses problemas.
Ao mesmo tempo, a decadência desses estados é praticamente irrefreável por causa da guerra, ocupação, da crise e do desaparecimento do Ba'athism, que poderia combinar a repressão com a integração social por algum tempo.
O simples fato de que os EUA e outras potências imperialistas não querer alterar essa "ordem", mas para restaurá-la, torna reacionário e lhe dá um caráter quase desesperado. Em qualquer caso, um "retorno" a um "funcionamento" do Iraque ou da Síria é impensável sem uma vitória contrarrevolucionária sangrenta. Na Síria, o imperialismo estadunidense e do Ocidente têm efetivamente que entrar em acordo com Assad e a influência russa.
O risco estratégico, para eles, é a perda do Iraque. O problema é como estabelecer um regime cliente "confiável". A arqui-reacionária, sectária-religiosa polícia do regime Maliki criou apenas as condições para o surgimento do Estado Islâmico (EI) e sua aliança com as tribos sunitas e oficiais do antigo exército iraquiano.
A parte curda do Iraque agora parece ser o aliado "mais confiável", mas isso coloca enormes problemas com o regime iraquiano e a Turquia. Esta última pretende aumentar sua própria influência e teria preferido um mandato da ONU para ocupar uma parte da Síria, sob a forma de uma "zona de proteção", sobretudo nas áreas de fronteira curda.
Tudo isso mostra por que os EUA e seus aliados ocidentais, bem como aqueles do próprio mundo árabe, devem aumentar a sua presença novamente. Por isso, Obama deu um mandato virtualmente ilimitado para ataques aéreos no Iraque e na Síria. Mesmo que ele provavelmente queira evitar uma invasão terrestre do Iraque, não está claro, dada a situação de conflito político local, a forma como o país será estabilizado no interesse dos Estados Unidos, sem tropas terrestres.
Rojava e intervenção militar
Neste contexto, a questão colocada é como o movimento sindical, e os revolucionários, devem responder a tal intervenção. É claro que não só as forças terrestres, mas também ataques aéreos por imperialistas devem ser rejeitados. A esquerda deve se opor de forma clara e mobilizar nos sindicatos e movimentos de trabalhadores nos Estados Unidos, Grã-Bretanha, França e todos os outros países contra aqueles que apóiam tais intervenções.
Mesmo que os EUA estejam, no momento, a bombardear posições jihadistas ao redor Rojava (e, embora seja claro que é perfeitamente legítimo que os defensores curdos tirem proveito de tais ataques) os objetivos da campanha de bombardeio norte-americano devem ser compreendidos na sua totalidade e não como um ataque isolado limitado a Kobane. Os ataques imperialistas só servem para impor uma nova ordem reacionária no Oriente Médio. O Estado islâmico e suas atrocidades servem como um pretexto, uma justificativa ideológica.
Suporte para tais ataques, ou intervenção por parte da ONU com "capacetes azuis" ou uma "comunidade internacional" vagamente definida, isto é, um conjunto reacionário de todos os ladrões imperialistas e potências regionais semi-coloniais, nada mais é que a aceitação do seu direito de intervir, como o "poder regulatório" no chamado "Terceiro Mundo". Significaria subordinação política à própria burguesia, reconhecendo-o como um aliado "confiável" dos oprimidos.
Armar os curdos
Em vez de tal intervenção imperialista, seja com ataques aéreos, ou, mais ainda, com tropas terrestres, nós somos pelo armamento dos combatentes curdos sem quaisquer condições políticas e econômicas.
É claro, os imperialistas (ou outros estados) também estão perseguindo objetivos políticos. No entanto, enquanto as tropas terrestres ou unidades de ar, ou da Marinha, de um Estado imperialista ainda estejam sob seu controle e, portanto, servem aos seus objetivos de guerra, é bem possível que os operários e camponeses de um povo rebelde ou uma nação oprimida poderão assumir o controle das armas, mesmo que elas tenham sido entregues por potências imperialistas reacionárias.
Se isso será bem sucedido é em última análise uma questão de luta política e do equilíbrio das forças políticas.
Em Rojava isso significa em primeiro lugar que as armas devem ser usadas para defender as conquistas já feitas. Aqui podem ser mencionadas, nominalmente: a igualdade das mulheres, de todas as religiões e nacionalidades; a expropriação de grandes propriedades como um importante passo para uma revolução agrícola.
Os revolucionários devem apoiar esta sem “se” ou “mas”. É claro que essas armas também poderiam ser utilizadas pelo PYD, mas para rejeitar o armamento dos curdos por causa dessa possibilidade hipotética seria negar-lhes os meios de se defenderem aqui e agora. Seria facilitar a vitória do Estado Islâmico ou fazer os curdos dependentes da ajuda “benévola” da Turquia ou dos EUA.
A "Rojava Commune"
A necessidade de apoiar a luta pela Kobane incondicionalmente, não muda o fato de que a "Rojava Commune" e a política do PYD também deve ser avaliada com critérios marxistas.
Afirma-se frequentemente que Rojava está construindo um modelo social progressista. No entanto, quando falamos de um outro modelo de sociedade para além do capitalismo, queremos dizer mais do que as reformas que ocorreram até agora em Rojava. O que eles trouxeram é um regime político mais democrático e uma expropriação de grandes propriedades, ou seja, elementos radicais e fundamentais de uma revolução burguesa.
Sem alterações mais radicais, nenhum ataque sobre as relações de propriedade burguesas, no entanto, ocorreu e não faz parte do programa do PYD e PKK. O que expressa é uma tentativa de encontrar uma "terceira via" entre o capitalismo e o socialismo, em que todas as formas de propriedade (incluindo a propriedade privada dos meios de produção) devem ser subordinados ao bem comum. No entanto, esta é, na melhor das hipóteses, uma ilusão, como evidenciado igualmente tanto pela experiência histórica quanto pela análise do capital.
Esta utopia pequeno-burguesa reflete a base de classe de PYD e PKK. Eles são movimentos nacionalistas pequeno-burgueses/partidos que defendem o uso de meios bastante revolucionários (não legalista/parlamentar) para alcançar uma revolução democrática. Socialmente, eles são baseados em diferentes classes sociais, o campesinato, a pequena burguesia urbana e pequenas empresas e também nos trabalhadores. Ideologicamente, isso se reflete em uma mistura dos elementos stalinistas e libertário anarquista, que são codificadas no chamado "Confederalismo democrático".
Não há espaço suficiente aqui para apresentar uma crítica detalhada deste conceito. Argumenta-se que esta estratégia não pode levar à libertação do povo curdo da opressão nacional e social.
Por quê? Em primeiro lugar, porque ele não define exigências democráticas no contexto de uma transformação das relações de propriedade, o estabelecimento de uma economia planificada democrática. Em segundo lugar, porque não entende a revolução curda, como parte da revolução permanente no Oriente Médio, a necessidade do estabelecimento de governos operários e camponeses e uma federação de Estados Socialistas.
No entanto, precisamente esses dois pontos são cruciais, pedra angular estratégica de uma revolucionária política da classe trabalhadora no Curdistão, como em toda a região. Um partido operário revolucionário deve basear-se sobre eles, a fim de fazer avançar a revolução, ou então ele irá ser lançado em torno de si mesma no turbilhão dos acontecimentos.